domingo, 1 de novembro de 2015

A Vigília da Meia-Noite- Capítulo III


A Recaída Anunciada



                Beto Paiva levantou quase meio-dia em seu apartamento em Santana, era domingo de novo e era seu dia de folga no quartel. Desceu à rua e caminhou até a esquina em direção ao orelhão, inseriu fichas e telefonou para o pai, conversou por alguns minutos e ao desligar o telefone, percebeu que era observado por um senhor que estava sentado num banco próximo.
- Que bela sexta, não Roberto? Depois de uma noite pesada que nem a última, deve ser bom estar de folga.
- Ótima, seu Nicco ...É verdade, é bom tá de perna pro alto...

                Era um italiano nacionalizado, que apesar de seus sessenta e tantos anos aparentava estar ainda em boa forma física, lia um jornal onde Beto se atentou à manchete no verso da página. “SUSPEITO DE TRÁFICO DE DROGAS ENCONTRADO MORTO EM BOATE”. Ao perceber o interesse do rapaz pela noticia, entregou-lhe o jornal fazendo comentários sobre a mesma.– Arnaldo Teixeira, todo mundo sabia que ele era um bicheiro de marca maior! O que mais me intriga é que ele morreu esta madrugada, às duas da manhã, mesma hora em que a polícia afirma ter ocorrido confronto no armazém da boate dele. Não havia bebidas lá, só um caminhão cheio de cocaína, quatro homens inconscientes e dois mortos.

                Beto sentiu um aperto no peito, sabia bem quem era seu vizinho, Niccoló Di Sarto era celebridade no bairro, volta e meia o “Couraça Vermelha” e sua esposa recebiam visitas de fãs ou repórteres, em uma época onde vigilantes eram vistos como um movimento nacional genuíno. Se alguém podia suspeitar dos nuances de Beto era ele, teve de improvisar uma desconversa – Velhos hábitos não mudam certo seu Nicco? Quem o senhor acha que foi? Dom Pindorama? Ou o Gralha? – Beto ensaiou uma risada convincente, o velho lhe lançou um olhar de avaliação enquanto acendia um cigarro.

                Durante a tragada Beto sentiu o que estava por vir, seu Niccoló soltou a fumaça pela boca e falou com muito marasmo – Meu filho, vou te dizer uma coisa. Eu tenho bagagem... Experiência com coisas que a maioria das pessoas não tem. Se tem alguém por aí vendando o rosto pra fazer esse tipo de coisa... – Ele fez uma pausa quando tragou o cigarro, olhando avaliativo o rapaz – ...Pode ter certeza que a policia sabe, mas está esperando a hora certa! Já houve sinais demais durante esses dois meses, muito malandro fechando negócio ao mesmo tempo.
 Uma senhora saiu no portão da casa do outro lado da rua, era a típica idosa italiana, rechonchuda e baixinha, os cabelos que um dia foram de um castanho fortemente avermelhado já estavam quase totalmente grisalhos; Chamava seu Niccoló para dentro, os dois homens se despediram com um aperto de mão. Beto apertara a mão de Niccoló algumas vezes, sempre com um aperto forte, só que desta vez ele descobriu a verdadeira força daquele senhor que o olhava profundamente nos olhos.

- Até qualquer hora menino, trate de andar com um olho na nuca.

- A gente se vê, seu Nicco.

                Niccoló entrou em casa e da porta observou com a esposa o rapaz entrar no prédio, ela percebeu sua preocupação e sabia do que se tratava, então insistiu – Deixe disso Nicco! É só um rapaz do quartel com problemas demais. – Ela olhou o marido intrigada.

- Eu vejo muito de mim naquele garoto, Carmella...! Quarenta anos atrás eu vivia o mesmo estilo de vida dele. – Niccoló devolveu o olhar da esposa, ciente de que ela havia entendido o sentido da frase.

- Chega dessas suas suspeitas, sua neta vem vindo! Camilla vem lá do Jabaquara pra te ver e já vai chegar! – Os dois foram até a cozinha, ela foi até o fogão e ele se sentou para ralar o queijo, continuaram a conversa sobre Roberto Paiva, chegando à conclusão que sua neta não necessitava saber nada sobre tais suspeitas. Ela mesma falava muito de como a policia havia relaxado nos últimos anos.
                Finalmente a moça tocou a campainha por volta de 12:30 para a contrariedade do avô que almoçava meio-dia  em ponto. A avó abriu-lhe a porta e lhe deu um abraço apertado, Camilla Di Sarto era loira, em seus vinte e poucos anos, de mais ou menos 1.70 de altura. Sentou-se ao lado do “vovô Couraça” como gostava de brincar.

- Então, piccola? Qual é a chance desse velho te ver nas próximas olimpíadas? – Seu Nicco a chamou pelo apelido de criança, que significava “pequena”.

- Pois é, meu amor! Eu e seu avô esperávamos te ver em Seul no verão, que houve? – A avó perguntou analisando os cabelos da garota, ainda não gostava da ideia de vê-la morando longe e sozinha.

                Ao som da pergunta, a moça mandou uma garfada enorme de Cappelletti. Não Queria contar aos avós que não foi às Olimpíadas na Coréia do Sul porque não quis, era ótima ginasta, praticava Kickbox desde os 13 anos e foi à França, em 1986, para aprender Jiu-jitsu e um esporte obscuro chamado “Parcour” voltou à pouco tempo e alugou um apartamento no Jabaquara.

- Ah vovô, eu... Não passei no processo seletivo. Mas sabe, eu tenho progredido muito no espaço onde eu trabalho, talvez eu comece a dar aulas de kickbox por lá.– Niccoló se esforçou para parecer feliz, não gostava do envolvimento da neta com um esporte tão violento. Dona Carmella adorou; Ver a neta vencendo na vida já era o suficiente para deixa-la feliz.

- Ahh, que alegria, Camilla! Que orgulho, não é Nicolló? Seu avô era um ótimo boxeador também.

- Eu nocauteei alguns sim, mas foi só você quem me nocauteou Mella. Se lembra do Bondinho?

                Todos riram, Nicolló esqueceu-se dos problemas, o passado era aonde ele mais gostava de voltar, fazia dois meses que ele o namorava, com tudo o que estava acontecendo. Começou com as histórias habituais, às 13:45 ele terminou suas histórias, contando como o “Couraça Vermelha” e a “Fillet Sautant” finalmente desmontaram uma quadrilha de agiotas, prometendo nunca mais usar uma máscara. 

- É vovô...O senhor soube do Arnaldo Teixeira, foi morto sábado e a policia tá afirmando envolvimento, mas tá na cara que não foram eles, o senhor acha que... – Nicolló ergueu uma sobrancelha, a neta havia seguido sua linha de raciocínio, ele simplesmente sabia. 
                 Disse a ela que não tinha certeza de muita coisa, mas que realmente era fora do comum. Anoitecia quando a jovem saiu da casa dos avós, ao portão se despediram, a moça havia tirado o casaco e só então Nicolló e Carmella notaram a tatuagem no ombro da menina, que usava uma regata.

- Tatuagem é, piccola? – Niccoló falhou miseravelmente em esconder a revolta.

- Minha filha...é... bonitinha! – Dona Carmella conseguiu ser mais sutil, levantando a alça da regata para analisar o pássaro desenhado nas costas da neta.

- 'Brigada vovó, é um Rouxinol. Até semana que vem!

Ler - Capítulo II

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