Onde os Pontos se Cruzam
Sábado. Sandra
Alcântara entrou em um edifício em Santana, subiu até o quarto andar e tocou a
campainha do número 42. Quando o morador atendeu ela entrou entusiasmada, da
ultima vez que se viram foi na frente do prédio dela na Vila Gustavo; Tinham
ficado meio íntimos, lá no bar do Alves, onde ela se embriagou e contou pra ele
como ela entrou naquele meio.
O
pai a obrigou a praticar em estandes de tiro e aprender defesa pessoal quando a
mãe morreu em um assalto, ela era faixa preta em caratê shotokan e improvisava bem no boxe chinês. Roberto contou que
seguiu no exército por causa da família, o pai havia se aposentado da
corporação e o irmão era tenente coronel, ele já era primeiro-tenente logo
seria capitão; Descobriram também que tinham um mês de diferença, ele era de outubro
de 1963, ela de novembro.
Sandra trabalhava na
datilografia do jornal Folha de São Paulo apesar do bom dinheiro que recebia do
pai, lá conseguia informações interessantes, o que explicava a papelada que ela
carregava. Roberto pediu para ela deixar os papéis na mesinha da sala de estar
e sentar, foi até a cozinha e voltou trazendo duas cervejas. Quando voltou ela
havia espalhado os papéis em cima da mesa, pegou a cerveja e começou a explicar.
- Você sabe quem
foi Arnaldo Teixeira certo?
- Sei, bicheiro e
traficante, peixe grande.
- Teixeira tinha um
sócio, ninguém sabe quem, mas tinha. Eu falei com um contato na prefeitura e solicitei
a escritura do armazém.
Sandra mostrou a assinatura, uma
era claramente de Arnaldo Teixeira, mas a outra era muito peculiar para
discernir iniciais. Beto olhou para Sandra, captou a euforia em seu sorriso,
ela havia matado a charada antes de vir à casa dele.
- Quem é ele Sân?
Quem é o sujeito? – Roberto era corroído
pela ansiedade
- A única pessoa
que conseguiria calar o bico dos policiais que rondam as bocas de fumo do
centro, que poderia comprar um galpão por lá, você viu o nome dele no caminhão
naquela noite, sendo que no inquérito da polícia nem a placa dele consta. –
Sandra explica rapidamente, como se fosse óbvio.
- O caminhão, eu
achei que fosse roubado. Era das “Farmácias Pache...”
- Oswaldo Pacheco;
Dono de metade dos empreendimentos da zona oeste e centro, tem seu próprio píer
no Porto de Santos. – Sandra completou a frase, enquanto uma pontada forte de
euforia fez Beto se levantar do sofá.
- Como você
descobriu? – Ele perguntou se movendo impaciente, para o divertimento da
garota.
- O caminhão que
tava no armazém tá no pátio de apreendidos, hoje ele saiu pra céu aberto, saiu
em nota lá na redação, eu fui lá dizendo que ia reconhecer o carro de uma amiga,
eu sei que é aquele. – Ela sentia a própria agitação, até então sob controle,
entrar em sintonia com a dele.
Beto viu a mochila da moça ao lado da porta,
fosse lá o que ela estivesse tramando, seria essa noite. E ele estava nos
planos dela.– Certo Azaleia, aonde
vamos?
Em outra parte da cidade, no
Tremembé, um rapaz colocou alguns utensílios inusitados em uma mochila e fechou
um estojo de violão. Saiu de um conjunto de prédios e foi em direção à zona
norte; Havia visitado o caminhão apreendido quando soube de sua liberação à ala
pública e sabia de quem era e de onde vinha, queria ter certeza de uma
suspeita.
Não diferente dele, uma jovem
loira acabava de sair do pátio de apreendidos da polícia, lá o encarregado a
deixou à vontade para procurar o “carro do namorado”, foi quando ela viu o notório
caminhão da operação de cocaína e reconheceu de nome e rosto seu dono; Ia
cortar a garganta de mais uma grande figura, mas primeiro sentia necessidade de
uma justificativa, averiguar ilegalidades com esse tal de Oswaldo Pacheco. Na
saída agradeceu o guarda; “Hoje não está sendo o dia de sorte de ninguém”
brincou ele. A jovem saiu, rumo ao terminal de cargas da vila Sabrina, zona
norte.
Às 22:30, Sandra
e Beto chegaram à esse mesmo endereço, o portão do depósito privado do Pacheco de
onde saíra o caminhão, o plano era simples: entrar e verificar os caminhões
procurando algo ilegal. Na entrada do portão Sul eles pularam o muro sem
problemas, sem guardas, ali dentro os dois agacharam ao lado da guarita.
- Eu sei que não é nada de especial, mas...leva
isso. – Beto entregou à Sandra uma Beretta, sentia algo estranho aquela
noite, como uma pressão fora do normal em seus ouvidos, um calafrio na nuca.
Ela pegou a pistola com técnica, sem colocar o
dedo no gatilho, checou o pente e travou a arma.
- Eu sei que cê tá preocupado Beto, mas hoje
à noite é tranquilo. – Azaleia pôs a mão em seu ombro com a intenção confortar
o rapaz, tentando esconder qualquer sinal de apreensão que ela também sentia.
Do
outro lado do depósito, num estacionamento na área Leste, um sujeito de porte
grande colocava uma carranca chinesa no rosto e retirava catanas dum estojo de
violão. Ouviu passos atrás dele, quando estavam próximos o suficiente ele se
levantou e girou uma catana na direção do ruído. A lâmina parou a vários centímetros
da traqueia de uma linda jovem loira que sorria para ele.
- Sentiu minha falta querido? Eu ia entrar
sozinha, mas quando te vi chegando... pensei que você podia me convidar pra
entrar.
O
rapaz abaixou a lâmina, reconhecendo o “Rouxinol”, aquela garota estava
começando a irrita-lo. Mas viu uma brecha, aquela situação não lhe dava margem
para outro final; Teria de atura-la ou abortar a missão.
- Olha, gata... Eu vou falar numa boa, a gente
vai fazer juntos, mas se me atrapalhar... – Ele apontou o dedo na cara dela, o
que pareceu tê-la incomodado mais que a lâmina.
- Você me entrega pra polícia, grande
vigilante. Fechado. – Ela segurou o dedo dele e balançou como se sela-se um
acordo.
O
“Rouxinol” foi andando na frente, mas “Da Yu” a deteve, pensou por um instante
que tudo estava errado, sentiu um calafrio. Resolveu encerrar a aflição.
- Espera, antes... Sou o Dave. – Ela abriu
outro sorriso, mas dessa vez não de deboche ou desdém, e respondeu – Não tira sarro, tá? Camilla Di Sarto. – Ela
o olhava esperando comentários maldosos
- Di Sarto? Acho que eu já ouvi falar. – Dave respondeu meio desatento, fechando a
bolsa e o estojo de violão.
- É, deve ter ouvido falar do meu vô... –
Rouxinol acrescentou, ajeitando as luvas.
- O velho que eu vi na tevê, num documentário
esses dias sobre vigilantismo. É...Bacana. – Ele tentou emendar o elogio por último
para não parecer indiferente, a garota percebeu e riu, ajeitando o cabelo atrás
da orelha.
- Então , Dave. Vam’lá!
Entraram
no armazém; Os quatro, porém de lados opostos. Do portão Sul, o Bandeirante e
Azaleia, sem fazer barulho; Do portão Leste, Rouxinol e Da Yu, com a mínima
preocupação já que era tarde da noite e não havia seguranças. Em poucos metros
se encontraram em um pátio que dava entrada ao pavimento central, na junção
Leste-Sul. Ao sinal de problemas, o pensamento comum foi unanime e compreensível
de seres humanos, o ataque.
Azaleia
tinha guardado a pistola na cintura e tinha as mãos livres, nas costas estava a
besta, Rouxinol também não carregava armas à vista, ambas se enroscaram em uma luta
impressionante, de muita técnica, se estudando.
Azaleia usou
chutes baixos que confundiram Rouxinol, tempo suficiente para um Tate Zuki, um soco de caratê que acertou
a loira em cheio. Rouxinol riu, cuspiu o sangue da boca e tirou o cabelo do
rosto; Esperou a adversária dar combate, quando veio o chute alto Rouxinol
segurou a perna da moça na altura da cocha, inutilizando-a, com o braço livre
aplicou um soco no peito de Azaleia; Ela foi ao chão gemendo e tossindo, por
pouco tempo, logo levantou e se pôs em posição de combate, relanceando a visão
em seu parceiro.
Da
Yu usava apenas uma catana, e atacava pausadamente, mas com precisão, o
Bandeirante retirou um porrete do alforje e puxou uma faca, Defendeu-se bem por
um tempo, mas não evitou alguns cortes bem doídos; Até que a catana fincou em
seu porrete, ele aproveitou a deixa e chutou Da Yu com força nas partes baixas,
deixando-o fora de combate. Quando se voltou à sua parceira, sentiu as entranhas
revirarem; Azaleia estava no chão, desacordada, o hematoma no rosto já
evidente, sua oponente agora encarava o Bandeirante.
O Kickbox da moça veio ardendo, jebs pesados e uma sequência de chutes
altos, batendo durante dois minutos inteiros. Enquanto se defendia, Roberto
pensava na situação; Azaleia era ótima lutadora, ele só a venceu na viela
porque usou o elemento das ruas, assim como fez com seu oponente, mas essa
mulher era mestra, e também sabia jogar sujo pra vencer. Na deixa certa ele se
abaixou ao sinal do chute alto e deu-lhe uma rasteira.
“Estamos perdendo tempo” pensou quando
imobilizou a adversaria no chão, ela resistiu bem, muito contra sua vontade foi
que ele lhe deu soco no rosto da garota, que parou de se debater na hora e
sorriu com raiva pra ele, o fuzilando com o olhar; Ele retirou a máscara do
rosto, depois arrancou a máscara do rosto da dela, cuja face estava vermelha
como um pimentão. Azaleia se levantou atrás dele, assim como Da Yu.
- Por Que?!
A pergunta veio simultânea na boca dos três, menos Rouxinol que ainda matava o Bandeirante em seus pensamentos; Da Yu se adiantou para os dois, mas viu a arma que Azaleia apontava para ele, desdenhou levantando as mãos como um sinal de rendição. Ninguém disse nada por um minuto, foi Azaleia quem quebrou o silêncio. – Tá legal, eu não sei que porra foi essa, mas caramba...
- Essa gente não trabalha aqui, Azaleia! Meu palpite
é que tão aqui porque mataram o Teixeira, e vieram ver o sócio dele. – Roberto
pôs pra fora algo que já ruminava, não estavam fazendo essa besteira sozinhos,
pelo menos não esse tipo de besteira.
- Mas ele não está aqui, Bandeirante. –
Sandra observou ainda um pouco tensa.
Foi
então que o Bandeirante soltou Rouxinol e a ajudou a se levantar, limpou o
sangue que escorria pelo canto da boca dela meio que pedindo desculpas; A
menina que já estava corada ficou escarlate, os quatro se encararam. Foi a vez
de Da Yu e Rouxinol; Dave tirou a “carranca”, seu cabelo estava bagunçado,
Azaleia achou justo, abaixou a pistola e ficou sem máscara também.
- Eu e Rouxinol viemos aqui pra ver os
caminhões, só isso, até vocês dois aparecerem. – Dave coçou o queixo, decidindo
o que fazer.
- Gostei dos chutes garota! Um conselho de
professora: Precisa levantar a guarda depois que acertar seu oponente. – Rouxinol
pegou sua máscara da mão do Bandeirante, se dirigindo à Azaleia.
O
Bandeirante teve que concordar com a moça quanto a isso; Se sentiu mal com a
situação, estavam ali como eles para investigar um mistério que diz respeito à
sociedade que faziam parte, qualquer um tinha o direito e obrigação moral de
estar ali, pelo menos era o que pensava.
- Me... NOS desculpem, a gente julgou muito
cedo, meu nome é Roberto Paiva e essa é a Sandra...
- Sandra Alcântara. – Azaleia se apresentou, tinha
ficado alguns passos atrás do Bandeirante, se adiantou e ficou do lado dele. Os
dois resumiram suas partes da história até ali.
- Entendo porque vocês estão metidos nisso,
se vieram aqui é por causa do armazém. Engraçado, investigamos o mesmo caso, um
fez a parte do outro. Camilla Di Sarto, “à seu dispor”. – Rouxinol se
apresentou, zombando em uma reverência exagerada, o Bandeirante se mostrou
inquieto ao ouvir o nome da menina.
- Eu não sei, tinha ouvido falar do movimento
vigilantista voltando, mas ainda não engoli essa história direito, meu nome é
David Guerra, me chama de “Dave”. Então... pro pavimento central “Bandeirante” ?
– Dave brincou com o rapaz de venda amarela, havia percebido que por enquanto
uma parceria resolveria o problema.
Tinham
ficado naquele pátio vazio por tempo demais, logo foram cercados por cerca de
20 homens com pistolas e espingardas; usando jaquetas pretas. Todos usavam um
boné preto com o símbolo de uma companhia de segurança privada. Os dois casais
se aproximaram, ficando juntos ao sinal do perigo. De cima, numa sacada no
primeiro andar daquele pavimento, veio uma voz áspera e autoritária.
- Boa noite, todos ouvimos balburdia aqui deste
lado e viemos verificar. Pena, parece que cheguei atrasado, perdi uma boa
briga. – Oswaldo
Pacheco se apresentou sem rodeios, um homem asseado, na casa dos sessenta anos,
um pouco gordo, os cabelos que ainda possuía eram prateados e cresciam apenas
nas laterais, seus óculos eram grandes e quadrados. Falou com o ar indiferente
de um homem que lidava com um grau um pouco mais elevado de situações macabras;
Como se previsse e se preparasse para algo do tipo.
- Eu esperava agentes de inimigos meus, mas
vejo que são apenas jovens se adiantando para as festividades de fevereiro! Vou
confessar que cheguei a ficar nervoso com esses probleminhas que vem
acontecendo. – O velho havia retirado seus óculos de lentes grossas e limpava-as,
quando voltou a falar foi para seus “empregados”; Demonstrando o mínimo de
interesse aos garotos.
- Senhores, agora que já descobri a pedra no
meu sapato, nesse caso as pedras... Queiram, por favor, tira-las dele. – Ao
terminar sua sentença ele se virou e entrou no prédio, seu problema fora
resolvido.
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