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Capítulo IV - Alguém que eu conhecia
No dia seguinte rumaram até a praça onde Dowson morava. Era sábado
pela manhã e a praça estava apinhada de gente, em uma feira de bugigangas e
aperitivos de todas as partes do globo. – Continua sendo impressionante! – Liz
estava deslumbrada pelos cheiros e cores que invadiam seus sentidos. As fumaças
coloridas, os animais marinhos em espeto, as mulheres de túnica contrastando
com as seminuas, os marinheiros asseados dos barcos edenistas contrastando com
os comerciantes de fraques humildes de Jericoh , os trejeitos e línguas
diversas disputando qual era o timbre mais alto.
- Lembra quando meu pai trouxe a gente aqui pela primeira vez? Foi um
pouco antes de você ir embora. – Dwayne aumentou a voz para
que ela pudesse ouvi-lo, ela recebeu a mensagem, pois sorriu radiante para ele.
Caminharam pelas barracas, onde ele a fez provar ensopado de enguia Valésya e ela o desafiou a provar seu
polvo favorito, temperado com um caramelo ardente do norte de Nova Éden.
- Que horas esse seu amigo vai nos receber mesmo? – Ela perguntou
bebendo seu extrato de manga, sentindo-se um pouco culpada por estar até se
divertindo com aquilo.
- Dow é um ser humano complicado, se é que é humano. Mandei uma
telemensagem e ele enviou um horário criptografado, o interfone vai tocar
exatamente às 14:00. – Dwayne relanceou os andares mais altos do edifício
parcialmente abandonado através das tendas e barracas, pelo holopad circular em
uma das tendas, faltavam apenas dez minutos.
- Vem, vamos sair dessa bagunça! – Liz o pegou pelo braço, levando até
o canto direito da praça, onde a mureta de pedra protegia os passantes de
caírem nos decks dos submergíveis cinco metros abaixo.
Ela voltou seu
olhar às embarcações. Algumas eram enormes, com mais de vinte metros de
comprimento; outras eram as do menor design possível, de até oito metros.
Haviam aquelas cujas cabines eram frontais e possuíam uma ponte de observação
por todo seu fronte, já algumas possuíam a ponte de comando acoplada embaixo da
embarcação, em caso de problemas essas cabines se tornariam boias de
salvamento. – Sabia que a Comunhão usava ferro de Tehntzü nos submergíveis? Chegavam à 15.000 metros antes de serem
esmagados. – Liz comentou ainda observando um enorme Cruzador Vênus ser
abastecido de carga; sua estrutura colossal de ferro negro fazia sombra no
ancoradouro em que estava atracado, sua cabine de comando era retangular e
ampla, cercada por vidraças e se encontrava no topo da embarcação.
- É por isso que eles compram toneladas de Rhajitzü árabe do Marajá de Al Fayet, pra fabricar alguma coisa que
chegue perto dos 50.000 metros. – Dwayne respondeu roubando o extrato de manga
das mãos da garota e bebendo o resto que ela havia deixado.
- Pra quê tão fundo? – Ela o olhou divertida com a conversa, sentia
uma simplicidade, uma felicidade envolta na situação tensa pela qual passava,
era como se descobri-se naquela urgência toda, uma vocação escondida; uma
satisfação interna.
- Essa é a graça, eu acho, quanto mais fundo mais interessante fica.
Sempre tem um peixe maior em algum lugar. – Dwayne sorriu, relanceou o
horizonte. Enquanto muitos velejadores odiavam navegar embaixo d'água por
longos períodos, para o rapaz era uma segunda casa.
Eles se voltaram
para a praça ao perceberem uma grande comoção ao centro; Próxima á uma pequena
fonte ornada, havia uma mulher em pé em um caixote. envolta em véus
transparentes que borravam de leve suas partes, o que causou ovação por parte
dos marujos e constrangimento por parte de algumas vendedoras e até mesmo
prostitutas. – Que é isso? É normal? – Elizabeth subiu na mureta para ver
melhor.
- É sim! Elas se chamam de "As noivas de Nyng Hádda, O Deus da
maré". – Dwayne comentou ainda
sentado à seu lado, e ergueu as mãos apoiando-as na cintura dela, que entendeu
o gesto como uma precaução caso ela se desequilibrasse.
- Ouçam-me profanos marujos, que das águas abençoadas maculam, seu
tempo chegará! E dá mesma sujeira que usam para nosso lar atravessar, se
afogarão! Nyng Hádda surgirá da maré escura e todos aqueles que o insultam... –
Conforme a mulher proclamava com paixão seus versos de louvor, vaias de repúdio
e pedidos indecentes lhe eram feitos, até que ela desceu de seu
"palanque"e desapareceu na multidão.
Dwayne percebeu
que faltavam apenas dois minutos para às 14:00 horas, tirou as mãos de Liz e se
levantou. Rumaram então para o edifício. – O que você pensa disso? Deus da maré
e sua ira? – Ela perguntou, enquanto ele se postava ao lado do intercomunicador
do prédio de Dowson.
- Acho que apesar de uma teoria meio doida, ela tem o direito de se
expressar. – O rapaz respondeu sabendo que aquela não era a exata resposta
desejada.
O
intercomunicador então soou com voz monótona do ruivo estrábico. – Uma gaivota
sai do ninho pela manhã, que horas retorna? – Antes que Dwayne pudesse
desconversar as senhas malucas de Dow, Elizabeth se pôs a responder – Quando
encontra comida pros filhotes, eu acho. – Dwayne à olhou franzindo as
sobrancelhas, então acrescentou – Abre essa droga, Dow! – Nada mais saiu do
intercomunicador, apenas o som das travas do portão sendo libertas.
Subiram as
escadas até o andar da porta exótica do apartamento/base tecnológica. A porta
estava aberta, revelando parte do carpete saturado de conexões e tubos de metal,
Dwayne colocou a mão no ombro de Elizabeth, que ia na dianteira, ela parou de
chofre e deixou que ele passasse na frente. – Dowson...? – O rapaz sentiu a
irritação lhe subir pelas costas, o ruivo maluco e suas paranoias excêntricas
de estar sendo vigiado.
Entrou no recinto
procurando pelo amigo, mas nada viu. Liz veio logo atrás, reconhecendo
terminais de dados e fitas de decodificação instaladas em geradores O.Z. que
não deveriam nem estar ali, pelo fato de serem ditos como meio antiético de
adentrar a B.A.B.E.L e banidos de quase todas as províncias de Nova Éden. Foi
então que a garota sentiu o cabo de uma arma encostada em sua cervical.
Procurou Dwayne
movendo apenas o globo ocular, o rapaz examinava a praça, de uma janela no
fundo do ambiente, ela teria de agir rápido. Moveu os braços para longe do
tronco e começou a ergue-los acima da cabeça, então quando chegaram próximo à
altura da arma ela deslizou alguns centímetros para o lado, rapidamente segurou
o individuo pelos pulsos, e rezou para acertar quando levantou a perna na
altura na cintura e girou sutilmente para empurra-la contra os bagos do vulto.
Acertou. Pois Dowson caiu bufando no chão com as mãos entre as pernas.
- Cacete! Tudo bem aí? – Dwayne atravessou a sala rapidamente, pulando
a selva de cabos.
- Essa vadia é maluca! – Dow exprimiu a frase enquanto Liz apontava
para ele, ainda caído no chão, berrando por cima – Ele apontou a arma pra mim!
– Os dois falavam alto, se sobressaindo, Dwayne tirou a arma do chão e fechou a
porta, Depois ajudou o rapaz ferido a se levantar, auxiliando-o até a cadeira
em sua bancada.
Com um olho em
Liz e outro no teto, o ruivo expressava um rancor primordial, comentando em
escárnio – Você é ligeirinha ein, vaca?! – Dwayne olhou para as faces ruborizadas
de Liz, que segurava o cotovelo direito com a mão biônica esquerda, um ato de
proteção na linguagem corporal. – Ela é minha amiga, ela precisa da nossa
ajuda. – E dizendo isso, fez um gesto para que a moça se aproximasse. Ela o
fez, e com a voz mais meiga que pôde gerar anunciou – Me desculpa! Dowson,
certo? Foi sem querer, eu não sabia quem era e me defendi.
O rapaz quase
foco-a com ambos os olhos, depois se voltou para o amigo – Eu gostei dela,
gostei mesmo. – Então com um gemido ele girou a cadeira para o monitor e
redigiu os códigos de entrada na B.A.B.E.L. em uma tela azul. – Como eu posso ajudar? – Antes que Elizabeth pudesse responder,
Dwayne a tocou pela cintura novamente, ela lhe deu atenção e ele balançou a
cabeça em negativa.
- Dow, quantas vezes na sua vida você pôs as mãos em disquetes gama? –
Ele começou a falar, e a garota percebeu que Dwayne atiçava a curiosidade do
programador, garantindo sua ajuda.
Funcionou, pois
ele girou novamente a cadeira para encara-los, agora sim Liz seguiu sua deixa e
ergueu os disquetes na altura dos olhos estrábicos, que quase focara juntos nos
softwares que ela segurava. – Onde, meu deus, onde você conseguiu isso? – Ele
tomou os disquetes em mãos e voltou sua atenção à informática dos monitores,
Dwayne ia ensaiar algo, mas foi a vez dela de toca-lo na cintura e balançar a
cabeça em negativa.
-Digamos que se romper as barreiras de autopreservação, as carcaças
desses aqui serão suas. – Liz tirou da bolsa seus antigos projetos de
diplomacia, em disquetes oficiais da frota que, por serem oficiais, possuíam muito mais espaço de
armazenamento e velocidade de propagação na rede mundial. Dowson voltou a olha-la,
apenas com um olho – Eu gosto de você, moça! Vai levar meia-hora pra
quebra-los.
- Tira o que puder daí! – Dwayne voltou a andar pelo cômodo indo para
o vitral dos fundos, seguido pela amiga. – Aprendeu rapidinho a brincar com
ele, mas ele vai cobrar esse pagamento...! – O rapaz a alertou apontou para
bolsa dela, Liz ajeitou as mechas douradas atrás da orelha e olhou para a
praça, o movimento diminuíra ao cair da noite. – Não vou mais usa-los, Perkins
odiou todos mesmo.
- Esse cara parecia ser um babaca, porque você gosta tanto dele? – Dwayne
a olhou, injuriado pelo modo como ela tratava a memória do Conselheiro, um
brilho diferente, uma entonação diferente para o defunto. Ela o olhou, buscando
em suas pupilas o motivo de ciúmes infundado, imaturo. – Ele me deu
chances, ele abriu a porta pra profissão que eu prometi exercer.
- Aí que tá
Liz, você prometeu... Mas era o que você queria? – Ela meneou a
cabeça, o queixou tremeu e ela o firmou bem para responder – De novo não, D. de
novo não, essa conversa morreu faz quase dez anos. – Ambos se voltaram à visão
da praça, ambos relembrando aquela última discussão que tiveram, o elo forte
que tinham e que romperam por causa de escolhas pessoais. Depois de tantos
anos, aquilo os atingiu como uma onda grande, daquelas que derruba e parece
afogar, tirando um pouco o gosto do reencontro dos dois.
- Eu sempre quis que você fosse feliz, sempre me fez pensar melhor...
– Dwayne ensaiou algo, os últimos dias foram tão deprimentes que a chegada dela
começava agora a lhe trazer velhas magoas também. Elizabeth por sua vez, não
pôde deixar aquilo entalado na garganta. – Dwayne, pára de fingir que você
também não foi feliz...Com... Alguém. – Ela notou que aquela última palavra o
atingiu, pois ele ergueu a cabeça com uma expressão indecifrável.
- Aí, vocês dois. Pulei o programa mãe! – A voz os chamou de volta
para o problema do momento. Dowson transitava entre dois monitores e pareceu
imerso demais para ver Liz tropeçando e
caindo em um dos cabos do meio da sala. Chegaram à bancada para ver os códigos
do disquete se deletando em linhas verticais. – As barreiras de autoproteção
são bem irritantes, mas eu dei um empurrão nelas e lancei um código isca. O
programa piloto de segurança vai ficar perseguindo minha isca através do
hardware, vai garantir uma meia-hora nos arquivos deles até ser pego e
deletado. – Dow ascendeu as os refletores do círculo holográfico, e assim
Dwayne e Elizabeth caminharam até o centro da circunferência para interagir com
as programações.
A base
informática que os três disquetes formavam se projetou em volta deles no
círculo na forma de um globo de informações. Os arquivos giravam em neon verde
na órbita do globo. – O primeiro disquete é basicamente um muro de arrimo e não
tem nada de relevante, o segundo disquete contém dados em holografia estática,
talvez fotos de mapas e cartografia, agora o terceiro disquete é um mistério. –
Dow soava distante, sua voz chegava aos ouvidos deles em eco. Liz tentou tocar
um arquivo, mas ele se esfarelou em bits vermelhos na mão dela, como grãos de
areia quando retirados da praia e deixados correr por entre os dedos.
- Não dá pra acessa-los Dowson! – Dwayne exclamou para o ar, após observar
o que houve com o arquivo. – Claro que não, cara! Esse é o Hall de entrada,
vocês dois ainda são só visitantes. Agora... – A voz ecoante cessou e o globo
girou rapidamente ao redor do casal, atacando seus labirintos e quase tirando o
equilíbrio deles; quando a esfera voltou a uma rotação mais baixa, perceberam
que agora as holografias apresentavam anagramas em outras línguas, subindo e
descendo e navegando na diagonal pelo espaço.
- Esses são os códigos fonte que eu vi no terminal 2D! – Liz tocou um
deles e este se transformou em um arquivo de áudio, frequências de som se
propagavam através do globo na voz de uma mulher em um tom sistemático – Zawna, Mshikè, Fïtza, Dëka...Zawna,
Mshikè,Fitza, Dëka... Siq Lhúrya... – A mensagem foi repetida duas vezes
até que outras duas surgiram do cume superior do globo, essas estavam na língua
meridional de Bahässa – Hayashmed, Liil:shbá, Ulmhad... Haarmand
Ulmhad...
Os três ouviram
as mensagens por alguns minutos até que Dwayne pudesse decifrar a codificação
de sua segunda língua, o Sklonïstes, transcreveu a tradução com o dedo
indicador em uma espécie de tela, a qual Dowson havia feito upload ao globo. – São as quatro
direções! Norte, Sul, Leste...e números, coordenadas pra quê? – Dwayne as
anotava com Liz espiando por cima de seus ombros, na ponta dos pés. – Não são
do mundo real pelo menos, são chaves. Elas destravam os pinos de segurança e
liberam as informações brutas.
- Nós só temos um pequeno problema com Bahässa... – Dowson comentou
quando os dois "saíram" da
B.A.B.E.L; Agora digitava as cifras de Dwayne em um quarto disquete laranja. –
E... Olha lá, temos dois disquetes liberados e informação restituída; isso dá
uns 75% de dados. – Dowson ria-se para seu amigo, que observava as linhas de
código se transportando de um monitor em vermelho, para outro em verde.
- Então, só precisamos traduzir Bahässa. A B.A.B.E.L não pode prover
algo assim? – Liz perguntou aliviada de ver as informações saindo, e mesmo
assim apreensiva por estar à um passo de transpassar a lei; Quebrar softwares
de qualquer átrio oficial era ilegal. – Não, dá pra acreditar?! Toda uma vida
em conhecimento marítimo, mapas, economia, até essa nova tecnologia de holo-transmissores
de conexão privada... E não temos uma merda de um dicionário embutido! – Dow
parecia sinceramente revoltado com a própria afirmação, logo voltou-se ao
disquete laranja e ao desktop que indicava a cópia bem-sucedida dos dados.
Logo, uma expressão tomou seu rosto, como uma solução que de inicio pareceu a
salvação, e se transformou em dúvida.
- D. Eu já sei quem vai traduzir isso pra gente... – Um único olho
focava Dwayne, com certo receio; E Liz não compreendeu logo de inicio até ver a
reação do rapaz ante a prerrogativa de Dowson. – Não! Tem que ter outro jeito,
outra pessoa vai ler isso, devem ter
umas quinhentas na província que podem ler essa merda! – Dwayne negava
veementemente, e Elizabeth percebeu que os termos vinham a pagamento. – Eu
posso pagar essa pessoa, não custa nada ir até ela e perguntar!
Ao som da
iniciativa da moça, os dois homens que discutiam empacaram em um olhar para
ela. Dwayne se voltou para o amigo, que ensaiou um sorriso amarelo, então se
rendeu – Tudo bem, meios para o fim, certo? – O rapaz disse pegando sua jaqueta
de aviador, que havia retirado para entrar no apartamento, devido ao calor que
fazia lá dentro por causa dos terminais. –
E Lizzie? Amanhã em frente ao intercomunicador às 08:00... – Liz estava
pronta para reclamar do titulo que Dowson lhe dera, mas resolveu relevar; Partiram
pelas ruas do Baixo Sétrium novamente.
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