quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A Vigília da Meia-Noite



As cicatrizes de sábado à noite




 É madrugada de sábado, se sente no ar carregado de setembro de 1988. O centro após a meia-noite, dois homens andavam apressados, nem notaram a moça de boné e jaqueta preta fechada até o pescoço; de mochila nas costas, que começou a segui-los na altura da 24 de Maio, talvez eles não tivessem notado, mas o sujeito sentado na escadaria da Igreja de Santa Ifigênia notou, “aquilo ia desandar” pensou.
                Saltou dos degraus e tomou o caminho mais rápido, pelo outro lado da praça, sabia para onde os homens iam, mas não entendia o que a garota fazia ali seguindo os dois. Ela parecia saber o que estava fazendo pelo modo como os seguia e pelo volume que a mochila em suas costas aparentava. Chegou ao destino com quatro quadras de adiantamento, guardou posição em uma viela no começo da rua, a menina conseguia segui-los com pericia, deduziu que ela reduziria o passo ao perceber que se aproximavam do ponto final, ali seria um esconderijo óbvio.
                A dupla que “ela” seguia estava longe de ser um desafio, com sorriso determinado a jovem identificou o destino de sua presa, avistou uma viela logo que dobrou a esquina atrás dos dois, “perfeito pra ficar de tocaia” constatou. Entrou na viela e se esgueirou para trás de um Chevette, onde teria visão do armazém que os dois homens tentavam abrir, quando eles finalmente conseguiram ela pode relaxar pra esperar, foi quando percebeu que não estava sozinha no beco.
                Foi aí que o rapaz entendeu que tinha feito merda, surpreender alguém escondido atrás de um Chevette depois da meia-noite sem dizer nada pode ser perigoso, especialmente quando essa pessoa claramente está alerta e pronta pra brigar. O chute lateral veio rápido e pesado, mas ele se defendeu empurrando a perna dela para baixo. “Belo chute” não pareceu um comentário amistoso o suficiente para ela, que jogou o boné nele e continuou com mais alguns chutes sem sucesso, foi no ultimo soco que ela vacilou, sem visão total e com a empolgação falando mais alto, deixou a guarda aberta o suficiente para um revés.
“É agora” pensou ele quando segurou o pulso da moça antes que ela pudesse pensar o próximo movimento e a girou, forçando seu braço em um ângulo perigoso, passando o próprio braço em volta do pescoço dela. Ficaram imóveis por alguns segundos, ela respirava rápido e alto, ele devagar e profundamente.
- Eu só quero trocar uma ideia. – Sussurrou o rapaz, o medo dividia espaço com a ansiedade e a razão.
- Então me larga pra gente continuar conversando! – Ela não seguiu a deixa dele de falar baixo, se exaltando.
- Não desse jeito. – Ele mudou de ideia quanto a falar baixo, percebeu que aquela não era uma primeira boa impressão, no que ela respondeu ameaçadoramente – Eu não tenho nada pra te falar. – A moça disse segurando o braço que envolvia seu pescoço.
- Seguindo dois malandros às duas da manhã de mochila nas costas...? Conta outra! – Ao ouvir o comentário do rapaz, a garota se calou, "ele" a seguiu enquanto ela seguia aqueles caras, então não estava com eles. Quem... ? – Ela não terminou a frase, ainda estava insegura.
- Alguém que nem você, que tá doida pra entrar lá e descer o cacete neles! – Foi a resposta do rapaz.
                Ele sentiu que a garota se acalmava e soltou-a, ela se virou e eles se encararam sob a fraca luz alaranjada do poste de energia. Durante dois minutos se observaram tentando decidir se iriam se matar na porrada ou se ajudar; Ela tinha cabelos castanhos que caiam até um pouco abaixo dos ombros, nariz curto e achatado e olhos castanhos vivos, apesar de ser alta ele era um pouco mais, tinha cabelos castanho escuro, curtos; Levantou a franja pra fazer um topete, olhos castanhos e sobrancelhas grossas. Então o jovem homem quebrou o momento, se virou e agachou procurando alguma coisa em sua mochila encostada na parede. "Ela" notou que o blusão cinza que ele usava parecia volumoso.
- O que te trouxe aqui? – Ele perguntou, tentando não demonstrar interesse, enquanto vasculhava a própria mochila.
- Acho que a mesma coisa que você... – A garota o olhava curiosa, centenas de possibilidades a atingiam, no que ele respondeu – Ah, a cocaína que eles tão vendendo quase em atacado no viaduto da Ifigênia?!
- Lá também? Que merda. – A jovem jogou o cabelo para o lado, era pior do que pensou, e com certeza tinha mais gente lá dentro.
- Tá pronta? – Ele perguntou, ajustando um coldre debaixo do braço. Foi então que ela se deu conta do que fazia tanto peso em suas costas, não tinha aberto a mochila, mas a garota se deteve – Só vai levar um minuto. – Ela disse retirando e montando uma besta da mochila, colocou luvas de couro pretas e tirou a jaqueta, mostrando um blusão de esqui roxo e preto que combinavam com a calça que ela usava, botou um colete à prova de balas leve e fechou o blusão até o pescoço, tirou da mochila uma aljava pequena com virotes de alumínio e a posicionou ao lado da pochete, afivelou ambas na lateral do corpo.
- Gostei. Você tem estilo!
                Ela se virou para responder o rapaz e se sobressaltou mais do que desejava demonstrar. Ele usava um suéter verde e uma calça cargo do mesmo tom, usava luvas de Motocross amarelas e coturnos; Tinha colocado coldres em ambas as pernas bem como bolsos de munição; Usava um colete à prova de balas com mais ou menos dez bolsos e um coldre axilar, todos de cor bege claro.
- Eu...também gostei...do seu “visú”... – Ela comentou, ainda analisando o rapaz; uma raiz de preocupação brotou enorme em sua cabeça. Será que tinha subestimado a situação?
                Ele riu mais alto do que planejava, olhou em volta, arregaçou as mangas e refez a pergunta Tá pronta?
- Mais uma coisa! Talvez você não use, mas eu tenho gente que eu amo pra proteger. – Ela retirou da mochila uma máscara grande que cobria os olhos e descia até a bochecha, usando cola teatral pra fixa-la no rosto, ela parecia já ter feito aquilo algumas vezes.
- Não adianta muito se... ah que se fod... – Ele não terminou, ela sentiu a ironia quando ele vendou os olhos também com um véu amarelo simples com dois buracos para a vista. Andaram juntos até o armazém onde a movimentação parecia ter aumentado, ela com a besta na mão ele com um taco de alumínio.
- Pra que todo esse aparato se você não vai usar armas? – Ela atravessou a rua ao seu lado, mas não tirou os olhos dele nem por um instante.
- A vizinhança não liga pra baderna, mas se assustaria com tiros e eles sabem disso, só tô usando a beca toda pra representar direito. Aliás, isso é uma arma. – Ele sussurrou mostrando o taco. A moça sentiu os músculos das pernas se retesarem, estava com medo.
                Se aproximaram do imenso portão de enrolar feito de aço, pelos vitrais superiores viram luzes acesas, mas o portão havia sido fechado, não havia como entrar por ali, os dois se agacharam ao lado do muro e esperaram.
- Como eu te chamo? – Perguntou a moça. Talvez não estivesse sozinha afinal, mais alguém estava agachado com ela às duas horas da manhã prestes a invadir um armazém cheio de traficantes.
- Por enquanto me chama de... “Bandeirante” – Ele quase se arrependeu desse codinome, ruminava algo assim há semanas.
- “Azaleia” – Ela lançou, também não tinha tido muitas ideias pra isso.
                Sentindo certa descontração os dois se cumprimentaram. Descobriram um pequeno portão de ferro na lateral do edifício, entraram por ali e subiram por uma “escada caracol” que dava no nível superior do prédio e à uma porta, que estava aberta, eles a atravessaram. Acessaram uma sala num andar superior, servia de escritório e seus vitrais permitiam uma visão ampla da garagem abaixo; O ocupante da sala era um sujeito careca e mal encarado, de pé em frente aos vitrais com um terrível odor de corote.
                “Azaleia” e o “Bandeirante” se entreolharam. O rapaz mascarado se adiantou para trás do homem que agora levava uma garrafa pet com o álcool aos lábios e saltou pelo flanco do sujeito desavisado, com a mão aberta atingiu com força o fundo da garrafa. O recipiente se alojou quase que por inteiro para dentro da boca de seu adversário, que impossibilitado de falar e em pânico, tentou puxar uma arma da parte de trás da calça; não teve sucesso, foi ao chão após levar uma "tacada" no rosto.
                "Azaleia" passou por cima do sujeito caído, que agora enchia a garrafa enterrada na boca com o próprio sangue, e olhou pelas janelas da saleta. O armazém estava vazio exceto pelo caminhão no centro do espaço, os homens estavam espalhados e pareciam ao menos tranquilos, o  “Bandeirante” se aproximou dela.
- Novidades? – Ele perguntou examinando o piso abaixo junto à garota.
- Dois à esquerda, um no caminhão, outro à direita e mais um que saiu pra fumar, tinha mais um aqui, cadê... ? – O estomago dela revirou ao perder um dos alvos.
                Neste momento entrou na sala mal iluminada um mulato calvo de jaqueta vermelha fedendo à pinga. Entrou na sala anunciando – Inácio a gente tá fechando, tu vai ficar?...Mas que porra...!
                Foi então que ele se deu conta de que Inácio não responderia tão cedo, e antes que pudesse terminar sua frase de indignação, também se encontrava no chão. Com um virote atravessado no pescoço, havia sido disparado de uma besta no canto do lado da janela, o homem estremeceu e morreu em silêncio ao lado da porta por onde entrara.
- Ai, merda... – As mãos de “Azaleia” tremiam e ela ainda apontava a besta na trajetória da última flecha. Sem se mexer e se esforçando para não vomitar ou chorar ela ouviu a reação do “Bandeirante” – Ah, caralho... garota, você... que porra foi essa? – Ele abaixou a besta das mãos dela.
- Achei que já tivesse feito isso antes! Ele sussurrou com urgência.
- Eu não fiz desse jeito... Eu não pensei que ele fosse...ele...m-me assustou... – A jovem se encontrava sem ar, pasma. Mas se forçou a voltar a realidade rapidamente.
- Tudo bem, só... Fica aqui, vamos fazer isso com calma! Tá vendo o vitral? Abre ele e atira no que tiver mais afastado.O "Bandeirante" acusou, indicando o vitral com a cabeça, pondo-a de pé, para fora da sombra no canto, onde estiveram agachados.
- Sério? E você? – "Azaleia" avaliou os vitrais imundos, abrindo um deles com cautela; Ouvindo a resposta do novo parceiro – Vou descer lá, ver se derrubo mais um! – Ele segurou o taco com firmeza, se certificando inconscientemente de que ele ainda estava ali.
                Enquanto descia as escadas de degraus curtos, de aço;  o “Bandeirante” foi pensando na menina, pareceu forte no beco com todo aquele caratê impecável, mas era só uma moça que parecia querer descontar sua raiva em algo e não sabia como, pensando bem ele também teve sua primeira vez e não agiu tão diferente. Ouviu um sibilo no ar e se atentou ao momento, algo rápido passou rasgando o vento próximo ao teto. Os virotes. À sua frente havia um homem parado ao lado do caminhão, era grande, seria complicado de subjugar.
                O homem ascendia um cigarro quando levou um soco seco na têmpora, ficou desorientado, o Bandeirante passou o taco pelo pescoço do sujeito e segurou as duas extremidades do instrumento, forçando-o para trás até o oponente desmaiar. Após abatê-lo, deu a volta no caminhão e descobriu que o motorista espumava pela boca, uma overdose causada pelos remédios espalhados pelo painel do veículo. Tudo aquilo era tão banal, e ao mesmo tempo à seu favor, que ele mal podia acreditar. Mas também não sabia como ainda estava de pé com tamanha adrenalina.
                “Azaleia” avistou seu parceiro dando a volta no caminhão, ela havia abatido mais um que se dispersou dos outros com sua besta, agora só tinham dois conversando próximo ao portão. Nem perceberam quando o “Bandeirante” se aproximou. Usou o taco com força rebatendo uma bola de baseball invisível na cabeça do primeiro, o segundo puxou uma .38, mas não à tempo de evitar uma tacada na boca do estômago e uma rebatida no queixo.
                Os dois se reencontraram na frente do caminhão, enquanto abria a traseira o “Bandeirante” ouviu o instante em que a moça percebeu o que tinha acontecido com o motorista, ela se deteve observando o cadáver ainda espumando, impressionada.
- Droga... esse cara Tá...? É ele tá! – Ela observava o corpo, tinha estômago para aquilo, já vira um corpo morto antes. – Conveniente né? E os amigos dele nem perceberam nada! – O rapaz mascarado comentou, chamando a atenção dela para a traseira do caminhando.
                O "Bandeirante deu espaço para que ela visse o interior da caçamba do caminhão. Pilhas e mais pilhas de cocaína, em caixas farmacêuticas vedadas. O jovem tirou uma delas do caminhão, e com um canivete rompeu o selo, ao som da pergunta de "Azaleia" – E agora? – Ficou contente consigo mesmo de saber exatamente o que responder – A gente se manda! Deixa isso aqui aberto pra polícia ver, tem aquele orelhão na esquina. A gente vê eles chegando da viela e a partir daí...
                Ele deixou no ar o restante da frase, a moça concordou com a cabeça. realmente achou uma boa ideia, a melhor opção; tornou a questionar – E depois disso? – Ao som dessa segunda pergunta, o "Bandeirante"respondeu retirando a máscara e estendendo a mão para cumprimenta-la de novo.
- Roberto, Roberto Paiva.
- Sandra Alcântara.
                Ela apertou a mão dele o olhando nos olhos, deu um sorriso melancólico; Cheia de dúvidas e preocupada, a adrenalina não havia lhe deixado ainda, parece que Roberto notou, pois lhe fez um convite –Vem Sandra, vam’bora! Eu conheço um bar que fica aberto até de manhã...

                Depois de voltar à viela para e guardar o equipamento, chamaram a polícia pelo orelhão da esquina; e assim que as sirenes se fizeram audíveis, saíram para a noite paulistana, na visão alheia eram nada mais que um casal caminhando pela penumbra, se recuperando das cicatrizes de sábado à noite.

Ler - Capítulo II

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